Do livro Histórias da mão esquerda, de Jesús Moncada
Há muitos anos que o povoado precisava suportar gente de fora, que tinha vindo construir uma represa que cortaria o rio; queriam domar e aprisionar suas águas para produzir energia elétrica, mas o preço seria a inundação da cidadezinha, que ficaria sepultada para sempre. Foram tempos muito duros, angustiantes, incertos. Não se importavam com as pessoas que iriam ficar sem casa, sem saber para onde ir, nem o que fazer.
Enquanto a represa crescia sem parar, dia e noite, todo um povoado desesperado lutava para conseguir sobreviver. Até que certa noite aconteceu aquilo que todo mundo queria. Os homens foram convocados para uma reunião, na qual souberam que dali a dois anos — os que faltavam para terminar a obra —, seria construído um novo povoado, e que, ao chegar o momento de abandonar o velho, iriam pagar tudo aquilo que a água engolisse. Além disso, os homens da casa poderiam cobrar, a título de indenização, cinquenta mil pesetas para cada membro da família.
Imediatamente, o povo se reanimou; as pessoas, tristes e abatidas, recobraram a ilusão e a alegria — entrecortada, porém, por certo pesar —; começaram os sonhos, as esperanças, os projetos, e começou também a noite de amor do coxo Silveri…
***
— Quem diria que iam me dar cinquenta mil pesetas pelas pelancas do velho Basílio! — murmurava o coxo Silveri enquanto subia pela ruela da Cresta, a caminho de casa. Cinquenta mil pesetas!
Parou de repente no meio do caminho. A quantia fascinante o deslumbrava.
— Cinquenta notas das grandes!
Três portas depois, o cachorro da casa do Nicásio, acorrentado a uma roda de carro, começou a latir com raiva, quebrando o silêncio da noite; um gato assustado esgueirava-se rente à parede… Silveri, com seus pensamentos, continuou subindo a rua.
— E eu, que não queria outra coisa a não ser que o velho arrebentasse quanto antes. E agora vão me dar um dinheirão! Um dinheirão por um velho pelancudo com mais de setenta anos, que nem consegue se mexer! Isso é o que eu chamo de um bom negócio… Dizem que a gente nunca sabe de onde vai vir a sorte, e essa é uma grande verdade! Olha só, e agora o velho vale uma fortuna. Mas, porra, bem que podiam ter feito isso antes, quando a sogra ainda estava viva! Iam ser cinquenta mil pesetas a mais! Mas a bruxa foi morrer antes só pra me encher o saco. Dava até pra falar que ela tinha feito de propósito se não fosse porque ninguém na época, nem mesmo ela que farejava tudo, sabia o que ia acontecer. Merda! Foi por pouco! Ainda deve estar quente… Velha apressada! E como a bruxa deve estar dando risada de mim, com aquelas gengivas desdentadas, se ela está me vendo agora. “— Você não vai conseguir cobrar os meus ossos, Silverinho!”, deve estar pensando. De qualquer jeito, eu ainda vou conseguir uma boa beliscada: cinquenta mil do velho, cinquenta mil da minha mulher, cinquenta mil pra cada um dos três filhos e cinquenta mil de mim mesmo. Isso dá… Deixa eu ver…
Silveri parou e fez as contas nos dedos, devagarinho:
— Cem mil… duzentas mil… Trezentas mil pesetas!
Ficou atordoado. Trezentas mil pesetas! Isso significava muitas semanas de trabalho na mina, centenas de dias remexendo o carvão com a pá ao ar livre, milhares de horas engolindo e cuspindo a poeira da linhita. E de repente ia chegar todo aquele dinheirão de uma só vez, sem precisar se esfolar; como um milagre…
— A primeira coisa que eu vou fazer vai ser comprar uma televisão, maior e mais bonita que a da minha cunhada! Não vamos mais ter de ir aa casa dela pra ver os filmes, como se a gente fosse pedir esmola! Já estou com o saco cheio das indiretas que ela dá pra minha mulher, falando que o seu marido é o encarregado da mina e eu sou só um peão que não tem onde cair morto, que ele ganha um bom salário, que nós nunca temos um centavo, e que nem a casa onde a gente mora é nossa. Fico com o sangue fervendo só de olhar pra ela! Vontade de esganá-la! Se eu pudesse ter ido aa escola, que nem o seu homem, ela ia ver só uma coisa, mas eu não tive outro amparo a não ser o trabalho, desde que nasci! Mas agora as coisas vão mudar, ah, se vão! Eles são sozinhos e só vão conseguir cem mil pesetas… Estão fritos! Tomara que a raiva arrebente seu fígado! O problema é que ainda me faltam dois anos arrancando os cabelos!
A cachorrinha Flor, que tinha ouvido ele chegar, saiu na rua para receber o dono e se esfregar nas suas pernas.
— Passa.
Silveri deu um pontapé na cachorra, que fugiu ganindo de dor.
— Dois anos é muito tempo. Muito! E o velho está mais pra lá do que pra cá, principalmente depois que enterramos a velha. Fica o dia inteiro sentado na cadeira, sem falar nada, como se não tivesse língua. Olha que se me morre… cinquenta mil pesetas. Ainda por cima, ficou tossindo a tarde inteira. Eu tenho que chamar o médico pra ver o que ele tem; se precisar, a gente compra penicilina, o que for. O velho precisa aguentar até o dia em que eu puser o dinheiro no bolso. É claro que eu não posso falar isso pra Joana… Afinal de contas, o velho é pai dela, e eu entendo que goste dele. Dois anos! Eles tinham de afundar o povoado era hoje mesmo.
Entrou no jardim da frente da casa. O velho Basílio dormia no quarto do térreo que dava para a entrada; Silveri chegou perto e apurou os ouvidos: depois de um tempinho escutou a tosse seca do sogro e balançou a cabeça, preocupado. Já ia entrar, mas pensou melhor e subiu a escada para o andar de cima.
— É melhor que não perceba que estou preocupado com ele. Sabe que nunca fui muito com a sua cara, e se eu mostrar muito interesse… Afinal, as cinquenta mil pesetas que vou cobrar, na verdade, são dele e pode fazer o que quiser com elas. Vai ser melhor que a Joana, que é sua filha, tome conta desse assunto.
Parou de repente no meio da escada, atingido por uma ideia que atravessou seu cérebro como um raio. Apoiado na varanda de madeira, ficou meditando por muito tempo.
— Como é que eu não pensei nisso antes? Essa sim é que vai ser uma jogadaça…
E acabou de subir os degraus que faltavam, arrastando a perna que as rodas de um vagão de carvão tinham estropiado doze anos atrás.
Dentro do quarto escuro, a mulher, deitada do seu lado na cama, o escutava.
— Em resumo, concluiu Silveri, no dia em que a gente for embora do povoado, vão nos dar cinquenta mil pesetas por pessoa. Você tá entendendo? Cinquenta mil pesetas! Nós somos seis aqui em casa, e por isso vamos receber trezentas mil pesetas.
Calou-se. No escuro, adivinhava o rosto da mulher, a sua expressão submissa e resignada de sempre.
— É muito dinheiro. A gente vai poder fazer um monte de coisas. Imagina só, Joana!
Silveri abaixou a voz:
— Mas ainda podemos conseguir mais… Isso só vai acontecer mesmo daqui a dois anos… Você está me entendendo, Joana? Só daqui a dois anos…
A mulher estremeceu quando a mão do Silveri começou a procurar seus peitos.
— Eles disseram que iam pagar cinquenta mil pra cada membro da família. Promessa é dívida. Nesse tempo dá pra gente ter mais um filho… Pensa só que mundão de grana!
Ela se encolheu amedrontada quando ele tirou sua camisola, e sem forças, começou a chorar baixinho.
— Vão ser cinquenta mil a mais, Joana… Cinquenta mil pesetas — sussurrava Silveri na sua orelha…
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Jesús Moncada (1941 – 2005) narrador e tradutor. Na sua obra perambula, a cavalo entre o realismo e a fantasia, o passado mítico do antigo povoado de Mequinesa, onde o autor nasceu, e que foi submergida pelas águas do Rio Ebre para a construção de uma barragem.
Autor de vários romances e contos, teve suas obras traduzidas para vinte e um idiomas. Ele próprio traduziu obras do espanhol, francês e inglês para o catalão.