Narcís Oller
I
Todos os dias, às oito da manhã com o toque do despertador, uma menina de quatro anos abre os olhos.
A primeira palavra que sai dos seus lábios é “Mamãe!”; a primeira que eles balbuciaram, e aquela que, certamente, vão pronunciar com ternura enquanto tiverem vida.
A mãe fecha o missal que estava lendo à luz difusa das frestas da janela, e sobe a persiana para que a luz e o sol entrem preenchendo o quarto de alegria.
Delicada como uma flor de maio, a menina remexe a cabecinha, esfrega as pálpebras sonolentas com os pulsos macios, e num pulo, sai da cama pendurada no pescoço da mãezinha, cobrindo-a de beijos, que ressoam como os piados da ninhada.
— Quem é a mais hermosa? — pergunta a mãe, estreitando o anjinho contra seu peito e devolvendo os abraços e beijos.
E a menina começa a contar os sonhos da noite passada, em que sempre aparece sua boneca, que agora repousa desmaiada ao pé da cama; vez ou outra, aparece o guarda da rua ou o homem do saco, carregando as crianças malcriadas, reminiscência das histórias que ouvia contar.
— O guarda da rua, hem? E te dava medo? Será que as empregadas te falaram dos guardas da rua? Ah, como mentiram pra você, filhinha, como te enganaram! Os guardas da rua…
— Pegam as meninas.
— Não, meu amorzinho; os guardas protegem as meninas, protegem o papai e a mamãe, protegem todo mundo que é bom, e só pegam os que são maus. Você não é má; eles não vão te pegar; eles gostam de você.
— O guarda da rua gosta de mim; ele sempre me traz balinhas… E você sabe quem também gosta de mim? O menino do pão.
— Quem é o menino do pão?
— Aquele que traz o pão toda manhã! Sabe quem é?
— Ah, sei! E você gosta dele?
— Gosto. Hoje, ele vai me trazer um pãozinho doce.
— Pão doce!
E a mãe dá risada enquanto termina de vestir a menina.
— Agora, precisamos rezar. Vamos ver se você sabe rezar o Padre-Nosso até o final.
— A campainha, mamãe, a campainha; deve ser o menino! — grita a pequena, pulando e tentando escapar das mãos da sua mãe.
— Volta aqui, volta aqui, mocinha levada! Volta aqui!
E mãe e filha dão risada, uma lutando para fugir, a outra para impedi-la; uma hora puxando, outra se deixando cair, as duas saem correndo até a porta do quarto, onde a primeira fica prisioneira da segunda; e sempre misturando as risadas com ternos beijos.
Aquele quarto é um pedaço do céu. Desde os quadrinhos que representam cenas parecidas àquelas da mãe e filha, ao papel de parede, cor de pérola com grinaldas de flores e ninhos de rolinhas, tudo é apropriado e risonho; por todo canto se percebe o bom gosto simples e alegre de uma alma tão cheia de candura como de modéstia. Os móveis, desde as camas até o criado-mudo, são de madeira clara, esbeltos, e de desenho elegante. O sol se alegra em tudo aquilo que toca, e depois de se olhar no espelho do lavabo, brinca com seus reflexos inquietos pelas vigas douradas do teto, estimulando, de passagem, as plantinhas da floreira suspensa no ar.
A campainha toca novamente, junto com o ruído confuso de batidas na porta de entrada, e de um assobio meio diferente.
A menina escapa correndo.
II
Não estava enganada: é o menino do pão; um menino espigado, loiro, que, com a sua camisa de morim branco, suas calças de brim e seus chinelos de dedo, deixa evidente sua classe social humilde.
É ainda tão criança que nem consegue subir com a cesta de pães até o primeiro andar: a deixa no primeiro degrau, e sobe só com duas bengalas que traz cruzadas sobre o peito, abraçadinhas como se lhe inspirassem carinho. Dá a impressão de ser a estátua do trabalhador, ciumento de sua própria cruz.
Se tivesse apenas tocado a campainha, a menina poderia confundi-lo com qualquer outra pessoa; por isso começou a bater na porta, a assobiar, a bater com os pés, como um cachorrinho fiel que fica doido quando vê seu dono.
A menina sai correndo, tropeçando nas pernas da empregada que abria a porta. Seu rosto e o do menino iluminam-se de alegria quando se veem.
A brancura dela e o seu avental alvo contrastam com a roupa cheia de manchas do trabalhador prematuro. Ali, está representada a imagem do bem-estar e de um futuro cor-de-rosa; aqui, a predestinação do trabalho manual com todas as suas consequências.
Fazia pouco tempo que se conheciam, mas desde o primeiro dia já tinha se estabelecido entre eles aquela corrente secreta de confraternização que, a despeito de todas as desigualdades e preconceitos que tanto separam os homens, une todos os seres inocentes.
Primeiro, ficaram se olhando e sorrindo; depois, deixando a vergonha infantil de lado, começaram a conversar animadamente. Logo que se conheceram, nasceu a vontade de se presentear com florzinhas, figurinhas, docinhos e outras ninharias, com o menino sempre levando a melhor parte. Alguém, desavisado, poderia até pensar que ali nascia o sentimento do amor.
— Você perdeu a bola que eu te dei ontem? — perguntou a menina.
— Olha ela aqui — ele respondeu, tirando-a do bolso. Hoje eu te trouxe um pãozinho doce. Todo dia eu vou te trazer um.
— Vamos dar o pão doce pro canário, né?
E, puxando o menino pela mão, a menina levou seu companheiro até a sala de jantar, onde ele ainda não tinha entrado. Até parecia que o canário os estava esperando, encolhido no chão da gaiola, e com as asas prontas para voar até o poleiro.
— Olha como é fofinho! Vem, Titit, vem…! — Pega um pedacinho e dá pra ele. Eu vou por esse lado e você vai pelo outro.
O passarinho pulava do poleiro ao chão, do chão ao poleiro, ora para a direita, ora para a esquerda; bicando, piando, batendo as asas e o rabinho com a mesma vivacidade. As crianças pareciam duas flores, o canário uma borboleta, e, às vezes, as asas deste e os cabelos daqueles se confundiam numa coisa só.
Enquanto isso, os pais da menina, com risadinhas de felicidade, contemplavam aquele jogo inocente, abraçados pela cintura, como para reunir, num cuidado só, o amparo à filha. O anel da união, tocado pelo sol, raiava no dedo da mãe como uma estrela feliz que ofuscava o pobre menino toda vez que seus olhos esbarravam com aquele resplendor.
Cansada de rodopiar em volta da gaiola, a menina puxou seu companheiro para lhe mostrar um verdadeiro bazar de brinquedos. O menino sorria, ao mesmo tempo que pelejava para ir embora, como um homem já escravo de suas obrigações. Mas a menina o detinha chamando sua atenção para cada uma daquelas generosidades do amor dos pais.
Uma hora dava corda numa boneca vestida de amazona que saía em disparada no seu cavalinho para ficar dando voltas como se estivesse no picadeiro do circo; depois lhe mostrava a miniatura de um salão de baile, ornado com uma suntuosidade capaz de despertar no pobre menino perigosas ambições; vieram, por último, as caixinhas de surpresa, o caleidoscópio, um chocalho, o xilofone, alguns espelhinhos, enfim, como dissemos, um bazar de mimos, toda uma saraivada de quereres que, sem perceber, podia cravar-se no coração do menininho.
— Olha, não é bonito? — a menina perguntava com toda a candura da inocência — Olha, esse aqui foram os Reis Magos que me trouxeram. A sala de estar e a cozinha, eu ganhei depois que tive o sarampo. Este carrinho era pra ir passear quando eu ainda não andava, quando era pequena, sabe? Agora, já não preciso mais dele…, agora já sou grande, né…? E os teus pais, não compram brinquedos pra você? — O menino a escutava com uma risadinha indulgente. — Você não tem paizinhos?
Uma sombra de tristeza cobriu o rosto dele que, depois de pensar um pouco, respondeu:
— Não.
A menininha franziu a testa.
— Mas então quem é que compra os brinquedos pra você?
— Ninguém.
— Mas os Reis Magos trazem alguns, né?
— Também não.
Se o interrogatório durasse um pouco mais, o menino ia cair no choro. Uma criança menor que ele o obrigava a pensar na sua tristeza pela primeira vez na vida.
O menino era enjeitado e tinha sido abandonado pelos verdadeiros pais. Das mãos da mulher que cuidou dele desde que tinha nascido, passou para as do padeiro que era agora seu patrão, sem que ele mesmo se tivesse dado conta de como tudo isso tinha acontecido. Lembrava que muita gente o chamava de “enjeitado”, e ele nunca tinha prestado atenção no significado dessa palavra; também se lembrava que ninguém tinha lhe comprado brinquedos; e, contemplando aquele clima de amor em volta da menina, percebia pela primeira vez qual era sua sorte, que lhe pareceu bastante triste. Mas nem com tudo isso chegou a perceber claramente nem sua origem nem sua vida atual, nem muito menos aquilo que nunca ninguém consegue saber: o seu porvir.
Felizmente, ele ainda não tinha idade para inquietar-se com sua sorte, e não restou no seu coração outro rastro além de um raio fugidio.
Logo esqueceu tudo aquilo, e desceu os degraus de três em três, pulando atrás da bola que tinha ganho da menina, e que ricocheteava pela escada como vanguarda alegre de uma criança ingênua.
III
Quando chegou lá embaixo, o menino ficou paralisado, frio, meio morto: a cesta de pães tinha desaparecido. A bola rolou languidamente até a rua, abandonada, enquanto o pobre menino, encolhido no pé da escada, chorava sem consolo. Como é que ia se apresentar ao patrão? Qual seria sua sorte? Onde iria dormir? Talvez na cadeia, no lugar do ladrão que o tinha roubado!
— Mãezinha do Céu! — o menino chorava, sem que alguém respondesse ao seu apelo. E ele se lembrava da menina do andar de cima, tão amada pelos pais, tão protegida, tão isenta de semelhantes perigos…! O soluço do choro o sufocava — Mãezinha do Céu! Mãezinha do Céu! — repetia em sua desolação. Mas as pessoas que passavam a dois metros dele, talvez até aquelas a quem pedia ajuda, prosseguiam indiferentemente. E não era porque o infeliz estivesse, como a verdadeira dor, escondido da vista dos homens. Teria sido igual se estivesse visível. O que quer dizer um menino que chora? Não são todos eles que choram? Para que procurar o motivo? Deixemos, então, que o pobre enjeitado se consuma na sombra, que é o elemento da sua existência! O tempo, o mais firme companheiro, já vai se encarregar de consolá-lo.
E agora outro menino, inocente como um anjo, cravou outra flecha no já destroçado coração do nosso amiguinho, levando embora a bolinha, único legado que ele devia à liberalidade humana! Mas, e daí…?, uma hora o enjeitado vai se consolar! O valor daquele brinquedo, ainda que represente a única ilusão de um desafortunado de nascença, pouco merece ser chorado.
O pobre mocinho não devia pensar assim quando, com as mãos nos bolsos, corria pelas ruas, tomado da maior angústia.
Nem mesmo ele sabia onde estava indo: o desejo de um desenlace, ou talvez algum outro motivo, o levava à loja do seu patrão; o medo o desviava para caminhos opostos.
IV
Na manhã seguinte a menina esperou seu amiguinho em vão. Não ouviu nem as batidas na porta, nem o assobio diferente: atrás do toque da campainha, apareceu um rapaz de vinte anos, vestindo um avental branco, e levando no ombro uma cesta de pães, de onde tirou, para desgosto da menina, o pão que antes era o amiguinho que trazia.
Durante três dias seguidos a menina teve igual desengano.
— Onde está o menino? — ela perguntou finalmente.
— Não vai vir mais.
— Vai vir, sim — ela rebateu batendo os pezinhos.
— Mandaram ele embora. Você não viu que é malandro? Pra que que você quer ele?
— Mas então vai ser você que vai me trazer o pãozinho doce.
— Ah, você quer um pãozinho doce! Sem problema! Toda manhã um pãozinho doce com açúcar e vamos ser amigos, né?
E a menina, com a esperança que essa promessa lhe oferecia, entrou na sala de jantar pulando contente.
— Titit! — anunciou ao canário — amanhã vamos ter pão doce.
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Narcís Oller (1846-1930) foi o introdutor do romance contemporâneo na literatura catalã. Pode-se dizer que, com ele, a narrativa do período renascentista atinge níveis formais e ideológicos realmente importantes, que representam, no sentido mais amplo da palavra, uma etapa definitiva na modernização da sociedade e da cultura catalã.